domingo, 4 de outubro de 2009

Sangrando-uma mensagem especial


A idéia de uma escrita com sangue, isto é, com o espírito, como afirma Nietzsche na seção intitulada “Dor ler e escrever” no livro Assim falou Zaratustra, sempre me deixou um pouco inquieto, pois sempre entendi isso como um certo estar por inteiro, quase uma conciliação entre as palavras e a vida – entre corpo e alma também. Nietzsche, creio eu, afirma com isso que escrever com sangue é viver cada palavra; sangue é espírito, como afirma o profetizador do “Além do Homem”.

Essa reflexão nietzschiana de alguma forma cai como uma luva e encontra uma efetivação na canção “Sangrando” de Gonzaguinha, pois, no caso dessa música, sangrar não significa meramente dizer o viver; mas sim, uma certa conciliação, isto é: dizer é viver, e sangrar, nesse caso, significa justamente “dizer a própria vida expondo-se por inteiro”, ou seja, viver o espírito é sangrar – entenda-se espírito como sendo a vontade do corpo.

“Quando eu soltar a minha voz por favor entenda, que palavras, por palavras eis aqui uma pessoa se entregando. Coração na boca, peito aberto vou sangrando...”, é uma certa sinceridade levada ao extremo, uma sinceridade que não significa meras palavras que damos sentido ao ouvir, muito além disso, é dar o próprio corpo, assim como um ator em uma peça de teatro, que precisa fazer o seu corpo dizer aquilo que está dito nas palavras de um roteiro - um artista sangra, na medida em que diz com o corpo.

Com toda razão alguém diria para mim que um ator encena, isto é, ele é na medida em que está em um palco e, portanto, o seu viver é relativo aquele momento – a sua sinceridade é falsa. Todavia, para mim sinceridade é efetivação do presente, estar por inteiro naquele momento, por isso, que a sinceridade do ator é intensa, é verdadeira.

No caso das palavras de Gonzaguinha, poderíamos pensar em um diálogo com alguém, quando não apenas falamos, mas dizemos com os olhos, desejamos – desejo no sentido de querer entender o outro -, queremos viver o outro em nós mesmos, não é isso que chamamos de encontro? Todavia, se pensarmos novamente naquelas palavras, veríamos que o compositor ao pedir a caridade de quem o ouve, traz consigo uma certa angústia, pois ele quer provar aquilo que é improvável: um sentimento. Não é à toa que ele diz: “veja o brilho dos meus olhos e o tremor nas minhas mãos. E o meu corpo tão suado, transbordando toda a raça e emoção”, pois ele está dizendo que é possível entender as suas palavras olhando para o seu corpo. Portanto, podemos dizer muitas coisas mesmo em silêncio.

Para finalizar essa breve reflexão, gostaria de trazer um trecho da Gaia Ciência de Nietzsche, que vai ao encontro das palavras de Gonzaguinha: “Não somos batráquios pensantes, não somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas – temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo”. Com isso, podemos dizer que os nossos pensamentos são resultados daquilo que vivemos, daquilo que sentimos no corpo: as diversas forças que nos compõem... As palavras de Gonzaguinha em si são a afirmação da vida em toda a sua potência, força e angústia - “apenas o seu jeito de viver o que é amar”, e amar nesse caso, é sangrar, pois é espírito.




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