domingo, 6 de dezembro de 2009

A galinha e os pintinhos



De repente eu me encontrava ali, numa fazenda às margens de uma estrada, após longo percurso de bicicleta, final de primavera, contemplando a paisagem, remontando meu passado de orvalho, quando, com privilégio, acordava com o cantar dos passarinhos, galopes de cavalos, de cheiro de mato, de ‘baladeira’ (estilingue) nas mãos, olhando para asas agitadas que se multiplicavam em refúgio das balas de barro que eu fabricava, imbuído de espírito caçador; animais pastando, outros bicando, procurando alimento ao chão, comendo nas mãos, arrastando-se, clamando sobrevivência num cenário quase bucólico entre os que pensam e os que não têm razão.

Muitos costumes ainda são mantidos ali e em quase todo lugar: tortura contra animais, num cenário preparado pelo predador.
Aguardávamos, ansiosos, o almoço feito em fogão de lenha, de galinha cheirosa, longe de suas espécies congeladas em frigoríficos, multiplicadas em peso e medida hormonais; de feijão de caldo grosso, temperado a gosto com alho e sal; porquinho assado na grelha apoiada em tijolos, enfim, uma combinação de prazer no tempo e no espaço da zona rural.

O caseiro, irmão de meu amigo, ouvindo constantes inquietações de uma galinha que se recusava aceitar os pintinhos enjeitados, levanta-se e dirige-se ao galinheiro, pega-a e risca com força seu bico num vai e vem sobre a tela de proteção, soltando-a, logo após. Desajeitada, aflita, ensangüentada, quase morta de dor, já não finge achar comida para chamar os filhos para perto de si, porque não pode bicar para lhe parecer mais real; tenta pular num gesto que está bem, que sobreviveu por aquele instante, para não assustá-los mais; quer aconchegar-se, chamá-los para debaixo de suas asas, mas eu sabia a dor que a dilacerava, pois cada movimento era palavra triste daquele coraçãozinho de tamanha ação. Queria ir para um poleiro, temendo o opressor; até arriscava um salto, mas ao mesmo instante retornava ao chão para proteger os pequenos.

Olho para outras de bicos tortos que insistem em comer direito, e já não pergunto o porquê, eis que a resposta é ríspida àquela cena, quando o caseiro ressalta que fazia aquilo para ela aceitar os pintinhos que não eram seus. Não sei quanto tempo durou, se a penosa e dolorida sobreviveu ou aceitou os que não lhe pertenciam, se foi para a panela mais cedo, mas sobretudo me restou um episódio, uma lição que deixo para todos nós, uma realidade extraída de fábula.

O homem continua sendo, com toda sua instrução, o ser difícil e intrigante que habita o planeta, mórbido de mazelas da alma e do coração, cruel para consigo mesmo e para os animais que cria.

Mas em sendo a vida composta de tantos de repentes, de repente abro a Constituição Humana manchada de impurezas pedindo proteção, num país cada vez mais injusto e insistente, cheio de regras e de pouco cumprimento à lei esquecida no tempo de outras civilizações, vejo inúmeros pintinhos enjeitados, mutilados, esquecidos, sem asas que acobertem seus temores. Já não têm sua mãe, que cresceu para virar alimento. E assim deve caminhar a vida, mais interessante do que fábulas, do que a realidade que se veste de vaidade e egoísmo, como pintinhos superlotados em caixas de papelão. E pintinhos de verdade sentem falta de quem os protege, antes de tornarem-se protetores, como as galinhas de bicos quebrados.



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